Em 1941, durante a II Guerra, sobre o litoral da França, o piloto de um avião de caça Spitfire Mk. V da RAF (Real Força Aérea Inglesa), desgarrado de seu esquadrão, atacou sozinho uma formação de seis caças alemães Messerschmitt Me-109E!
Com a vantagem da surpresa, abateu dois deles, mas ao desviar-se de outros dois, sentiu um impacto e ele julgou ter colidido com um terceiro. O Spitfire teve a cauda decepada, e ele teve que saltar de paraquedas sobre o território ocupado pelos alemães.
Capturado, foi levado para o hospital militar de St. Omer, na França ocupada, pois apresentava lesões graves. Naquele hospital, um médico alemão que o examinou ficou estupefato ao constatar que ele havia perdido as duas pernas! E mais que isso: ambas estavam cicatrizadas, mostrando que o trauma ocorrera há muito tempo!
Mas, quando a notícia se espalhou, o piloto inglês logo começou a receber visitas dos grandes ases da aviação de caça alemã servindo naquela área!
Todos sabiam quem ele era e queriam ver o piloto inimigo: tratava-se do Wing-Commander (*) Douglas Bader, um dos maiores ases e comandantes de caças daquela fase da guerra, apelidado por seus colegas “tin legs” (pernas de lata)!
Bader, desembarcando de seu Spitfire V "Dogsbody", em Tangmere, onde comandava três esquadrões . Como wing-commander, tinha o privilégio de usar as iniciais do seu nome como código de chamada do seu avião.
A história de Douglas Bader (báder, não “beider”) é um dos mais fortes exemplos de determinação e superação humana!
Quando cursava a academia militar de Cranwell, apesar de ser um excelente atleta em diversas modalidades esportivas, como críquet, rugby, hockey e boxe, vivia sendo repreendido por fugas e indisciplinas, até que foi ameaçado de desligamento. Aí, ele mudou, e tornou-se mais contido, pois não queria de forma alguma ser excluído.
Foi declarado Pilot-Officer (aspirante) em 1930, como segundo da sua turma, e designado para servir no esquadrão 23 de caças. Lá, logo estava na equipe acrobática do esquadrão, fazendo exibições públicas. Contudo, eram proibidas acrobacias abaixo de 610 metros de altitude. Bader frequentemente desobedecia a essa proibição.
Após uma dessas apresentações, ele e mais dois colegas foram até ao campo de Woodley, visitar o irmão de um deles, mas voavam Bristol Bulldogs, aviões diferentes dos usados nos shows.
Provocado por um jovem presente no local, acabou cedendo e concordando em fazer algumas acrobacias no Bulldog. Numa delas, executou um voo rasante invertido sobre o campo de pouso.
Algo saiu errado, o avião perdeu sustentação, e se precipitou sobre a pista, num grave acidente. Em consequência, o aspirante teve que amputar a princípio uma das pernas, e depois também a outra, a direita acima do joelho, e a esquerda 15 cm abaixo. Após algum tempo, recebeu próteses metálicas, mas mesmo assim, segundo os médicos, deveria andar apoiado numa bengala, depois que aprendesse a andar novamente.
Mas, Bader voltou a mostrar seu espírito rebelde e teimoso e, depois de muito suor e muitos e muitos tombos, conseguiu andar, um tanto desajeitadamente, sobre suas pernas de lata!
Foi desligado do voo e designado para uma função em terra, mas de vez em quando fazia voos clandestinos, mostrando que era capaz de faze-los. Porém, quando isto chegou aos ouvidos de seus superiores, ele acabou passando para o quadro de inativos, definitivamente afastado da RAF!
Impensável admitir como piloto militar um homem sem as duas pernas e ainda por cima indisciplinado! Os aviões eram (e ainda são) pilotados com o corpo inteiro, usando ambos os braços e mãos, pernas e pés. Os pés acionam os pedais do leme, para mudar a direção do avião, e acionam os freios das rodas.
Após algum tempo, conseguiu emprego na distribuidora de combustíveis Shell. Em 1935, casou-se com a jovem Thelma, que o acompanharia até a morte dela, em 1971.
Mas a guerra, que via de regra só traz infortúnio e tragédias, acabou abrindo a alternativa para uma incrível virada na vida de Bader! Ele já andara procurando antigos chefes e colegas com tentativas de reintegração, todas recusadas lacônicamente! A RAF estava de saco cheio daquele jovem inválido e chato, que insistia em querer o impensável!
Porém, a coisa começou a ficar nebulosa no oeste europeu. E em setembro de 1939, a avalanche nazista se abateu sobre a Polônia, ignorando as advertências e acordos firmados com os ingleses e seus aliados.
A Inglaterra logo estava em guerra com a Alemanha, e já estava reunindo equipamentos e treinando homens e mulheres para enfrentar um conflito de grandes proporções!
E uma das carências eram os pilotos! Foi criado até um quadro para pilotos femininas, pois essas mulheres poderiam fazer o translado de aeronaves das fábricas para as unidades aéreas, liberando os homens para pilotar exclusivamente os aviões em combate.
E, no meio deste clima, havia um piloto brevetado, de reconhecida capacidade, que talvez servisse para alguma coisa!
Assim, finalmente, os requerimentos de Bader foram aceitos! Ele se apresentou para testes, foi avaliado como tendo capacidade total e, com o apoio de seus antigos colegas de turma, já em postos intermediários, ele voltou a pilotar caças! Seus pés ainda não eram capazes de acionar os freios, mas os caças daquela época já incorporavam freios manuais no manche.
Numa unidade de atualização reencontrou colegas de turma e de academia, alguns já squadron-leaders (majores), enquanto ele era o aspirante-a-oficial mais velho da RAF!
Em 27 de novembro de 1939, quase exatamente dez anos após o acidente, ele solou novamente um avião! E neste voo, deu novamente um rasante invertido, sendo desesperadamente advertido pelo intrutor-chefe!
Logo, pilotou um bombardeiro monomotor Fairey Battle, familiarizou-se com os instrumentos e comandos de aviões modernos, como hélices de passo variável e trens de pouso escamoteáveis.
Servindo no esquadrão 222 em Duxford, logo num dos primeiros voos se acidentou com um Spitfire, ao tentar decolar com as pás da hélice em ângulo errado.
Isto chegou aos ouvidos de seu comandante Leigh-Mallory, que mesmo assim o promoveu a flight-leader (tenente-aviador).
Em maio de 1940, foi enviado para a Batalha da França, e protegendo as concentrações de tropas em retirada, abateu seu primeiro avião inimigo, um caça Messerschmitt Me-109 sobre Dunquerque.
Depois da queda da França, ele subiu rapidamente de posto, como é usual em tempos de guerra, e ao início da Batalha da Inglaterra, em setembro, ele já comandava um esquadrão.
Os alemães planejavam invadir as Ilhas Britânicas para consolidar seu domínio sobre a Europa Ocidental, mas antes, precisavam destruir a RAF. Para isto, possuiam naquela frente mais de 2.500 aviões de diversos tipos, principalmente caças e bombardeiros. Para se defender, a RAF contava com um número inicial de aprox. 600 caças de primeira linha.
Na Batalha da Inglaterra, Bader pilotou o caça Hurricane da Hawker, com bastante sucesso, tornando-se um ás.
Durante a Batalha da Inglaterra, Bader advogou o emprego de concentrações cada vez maiores de caças contra as incursões aéreas alemãs, com decolagem antecipada e maior autonomia decisória para os comandantes das formações aéreas.
Isto era arriscado, pois se os alemães usassem táticas de diversão, poderiam atrair a maioria dos aviões ingleses para um engôdo, atacando com a força principal somente quando os caças ingleses já estivessem quase sem combustível.
Mas, as táticas sugeridas por Bader foram aprovadas pelo comandante dos caças Leigh-Mallory, tiveram bom resultado, e, ao final da batalha, em outubro de 1940, os alemães desistiram de invadir a Inglaterra. A essa altura ele já havia abatido pessoalmente mais de 20 aviões alemães!
A RAF começou a assumir ações ofensivas, enviando grupos de bombardeiros escoltados por caças através do canal, atingindo alvos na Europa ocupada e atraindo os caças alemães para o combate.
Em março de 1941, Bader fora promovido a wing-commander (tenente-coronel) e, com base em Tangmere, comandava os esquadrões 145, 610 e 616, todos equipados com Spitfires VB (cinco-B), armados com dois canhões de 20 mm e quatro metralhadoras .30.
Todos menos um: Bader voava um modelo VA, sem canhões e com oito metralhadoras .30, como os modelos antigos! Seu avião, como permitido para os comandantes-de-ala, ostentava as suas iniciais DB na lateral, e era identificado pelo codinome “dogsbody”.
E foi numa dessas incursões que Bader, após uma escaramuça, se viu sozinho na retaguarda de seis caças alemães.
Recentemente, surgiram hipóteses de que não houve realmente a colisão, tendo em vista que não há nenhum registro de que algum caça alemão tenha sofrido tal acidente (certamente ficaria muito danificado e também cairia).
Há possibilidades de que ele tenha sido atingido por fogo dos canhões de outro caça inglês, que atacava a mesma esquadrilha alemã e visava um dos Messerschmitts, ou por outro caça alemão, já que antes de saltar, ele conta ter visto um Me-109 passar bem perto, coincidindo com o relato de um piloto alemão, que abateu um Spitfire naquele mesmo dia. O ás alemão Gen. Adolf Galland sempre sustentou que ele foi abatido por um suboficial alemão da mesma esquadrilha que atacou.
Pintura de Frank Wootton, de 1978: Bader alija o canopy do Spitfire para saltar, enquanto um Messerschmitt, supostamente o que o abateu, passa perto!
Após o impacto, ele ficou com as pernas artificiais presas nos pedais, e separou-se delas para poder saltar de paraquedas.
Os alemães recuperaram uma das próteses que caira num campo, desamassaram-na, e ele pode usa-la. Mais tarde, aviões ingleses, a pedido dos alemães, lançaram de paraquedas uma nova prótese para a outra perna.
Mas, em retribuição a esta gentileza, ele fugiu e foi recapturado diversas vezes, sendo finalmente transferido para o castelo-prisão de Colditz, na Alemanha, onde ficou por três anos até ser libertado pelos aliados em 1945.
Sir Douglas Robert Steuart Bader (21/10/1910 - 05/09/1982)
Foto dos anos 70.
Depois da guerra, ele voltou a trabalhar na Shell, foi voluntário numa organização que dava apoio à pessoas com membros amputados e assumiu posições políticas bastante polêmicas.
No pós-guerra, ele visitou, num campo de concentração inglês, alguns pilotos alemães prisioneiros, inclusive Hans-Ulrich Rüdel, que também voou parte da guerra com uma perna amputada. Mais tarde, ele escreveu o prefácio do livro de Rüdel, TROTZDEM, publicado no Brasil pela editora Flamboyant, com o título PILOTO DE STUKA. E não se abalou mesmo após saber que Rüdel era agora líder neonazista.
Aliás, suas posições ultradireitistas causaram bastante polêmica nos anos posteriores. Bader não era decididamente uma pessoa simpática, nem “politicamente correto”. Entre outras, apoiava o internacionalmente repudiado regime da Rodésia, e era a favor de restrições aos imigrantes no Reino Unido. Sua idéias eram expostas com bastante ênfase, para não dizer agressividade.
Voltou ao emprego na Shell, onde já trabalhara antes, ao mesmo tempo em que era voluntário em uma instituição de apoio a pessoas que passaram por amputação de membros. Por esta atividade, recebeu da Rainha Elizabeth, em 1976 o grau nobiliárquico de Cavaleiro.
Convidado a um encontro na Alemanha com a presença de inúmeros veteranos de guerra da Luftwaffe, ele declarou durante o evento: “Meu Deus, eu não imaginava que haviamos deixado escapar vivos tantos desses bastardos!”
Sua biografia foi publicada em 1954 pelo jornalista Paul Brickhill, com o título REACH FOR THE SKY (publicada no Brasil pela ed. Nova Fronteira, com o título: Bader- O Conquistador do Céu).
Um filme com o mesmo título original foi foi lançado em 1956 na Inglaterra, com Kenneth Moore no papel de Bader.
Bader faleceu em 5 de setembro de 1982, de ataque cardíaco, aos 72 anos, deixando viúva sua segunda esposa, Joan Murray.
Apesar de ser um exemplo de superação, pela maneira como enfrentou a adversidade, Bader ao que parece, nunca se empenhou em ser uma figura simpática.
(*) O posto de wing-commander (comandante-de-ala) na RAF, é equivalente a tenente-coronel.